Vidas secasDevia ter mais ou menos dez ou onze anos.
Não tinha televisão ainda na minha casa.
Vivíamos somente eu e meu pai.
Nossas noites resumia-se a ouvir músicas através do rádio e jogar cartas ou ainda ouvir histórias de assombração, de Saci Pererê e mula sem-cabeça.
Na escola começava o ginasial, hoje quinta série.
Do mundo pouco sabia.
Criança, naquele tempo, não participava da conversa dos adultos.
Portanto, creio que comecei a conhecer o mundo através dos livros.
Os professores nos mandavam ler livros de Machado de Assis, de José de Alencar e tantos outros escritores.
Lí: A moreninha, O Tronco do Ipê, A pata da gazela e mais um sem número deles, mas o livro que marcou minha vida a ponto de até hoje lembrar-me dos nomes das personagens foi Vidas secas, de Graciliano Ramos.
Foi a descoberta de um novo mundo. O mundo real.
Um outro Brasil que eu não sonhava existir.
Pessoas que eram muito, mas muito mais pobres, de todos os pobres que eu conhecia. Eram pessoas que lutavam para sobreviver, que não tinham o que dar de comer aos filhos, pessoas que não tinham mais carnes no próprio corpo, pessoas que tinham pés rachados pelo braseiro do chão castigado pelo sol inclemente.
Esse livro retrata fielmente a realidade brasileira não só da época em que o livro foi escrito, mas como nos dias de hoje tais como injustiça social, miséria, fome, desigualdade, seca, o que nos remete a idéia de que o homem se animalizou sob condições sub-humanas de sobrevivência.
Os principais personagens são: Fabiano, Sinhá Vitória, o menino mais novo e o menino mais velho, que compõem a família de retirantes; a cachorra Baleia, que é praticamente da família também; Seu Tomás da bolandeira, que aparece apenas das lembranças dos retirantes; o soldado amarelo, o dono da fazenda em que os retirantes se estabelecem e o cobrador da prefeitura, estes representam instituições que oprimem Fabiano (a polícia, o latifundiário e o governo).
A animalização e a incomunicabilidade dos personagens dramatizam a questão da fome e da miséria com que sofrem os retirantes oprimidos pela seca, pelos latifundiários (representados pelo patrão de Fabiano) e pelas autoridades exploradoras (representadas pelo soldado amarelo).
A animalização fica evidente em diversas passagens de Vidas secas, como, por exemplo, no capítulo “Fabiano” em que o personagem-título afirma para si mesmo: “Você é um bicho, Fabiano”.
Sente-se o cansaço, a fome e a dor que sufoca até a fala dos retirantes na narrativa do livro:
"Os infelizes tinham caminhado o dia inteiro, estavam cansados e famintos."
"A caatinga estendia-se de um vermelho indeciso salpicado de manchas brancas que eram ossadas"
"Resolvera de supetão aproveitá-lo (papagaio) como alimento..."
"Miudinhos, perdidos no deserto queimado, os fugitivos agarraram-se, somaram as suas desgraças e os seus pavores".Eu lia e relia os capítulos e chovara com eles e por eles.
Quando tiveram de matar Baleia, a cadela que era quase um membro da família para servir de alimento a eles próprios, chorei copiosamente.
Sentia o calor que queimava os seus pés...
Recordava-me quando era menor e minha mãe precisava de alguma coisa da venda e mandava-me correndo buscar.
Eu ia, sempre descalça, e tinha de correr de árvore em árvore, sempre buscando uma sombra para esfriar as solas dos pés que queimavam feito brasa quando pisava na calçada quente.
Esta recordação sempre me vinha à mente quando lia a saga daqueles nordestinos que não tinham nem mesmo uma sombrinha de arbusto onde refrescar a cabeça.
Ainda hoje as imagens criadas em minha mente são muito vivas e também as sensações e emoções que vivenciei enquanto o lia.
Acho que este deveria ser um livro de leitura obrigatória à toda pessoa que pensa em ser político.
E só seriam aprovados aqueles que sentissem a emoção sair pelos olhos. Quem sabe assim poderíamos resolver alguns dos nossos muitos problemas de pobreza.

Personagens de Vidas secas: Fabiano, Sinhá Vitória, o menino mais novo, o menino mais velho, da esquerda para a direita
Vidas secas